Diário da bolsa – 12nov2018 a Réveillon2019

16/11/2018

  1. Ganhei um café porque a atendente achou meu perfume muito cheiroso.

19/11/2018

  1. Linha E. Dois irmãos apresentam uma coreografia de hip-hop no vagão de metrô, se utilizando das barras de ferro para fazer suas acrobacias. Tudo isso sob os não-olhares de uma mulher e um homem, demasiado distraídos em suas próprias existências.

20/11/2018

  1. Lavanderia. “Ahora en Venezuela no hay nada”. “Ay, Fulana, ya estoy acostumbrado. En Cuba no hay nada hace tiempo”.

22/11/2018

  1. Thanksgiving no Harlem. Madrugada. Um homem desconhecido insistia para que eu entrasse em seu carro.

24/11/2018

  1. Linha R do metrô. Um homem sentado em um dos bancos alaranjados. Ao seu redor, ao menos 12 mochilas. Ele conversa sozinho, ou consigo mesmo. Em certo instante diz “thanksgiving”. Ninguém senta ao seu redor. Na 49th Street Station ele passa a colocar nas costas todas as mochilas. Desembarca na Times Square, como eu.
  2. Uma garota resolveu que eu olhava para ela de um jeito inadequado. Queria brigar. Termino minha refeição de cabeça baixa.

25/11/2018

  1. Off Broadway: Days of Rage. A cada beijo trocado pelos atores em cena, uma japonesa ria maliciosamente ao meu lado.

28/11/2018

  1. Instituto Cercantes de New York City. Evento: New Literature from Europe. Um senhor entra no auditório um pouco antes da terceira e última mesa, composta por três escritoras e um escritor. O assunto: redes sociais e literatura. O homem tentou interferir o painel enquanto  inúmeras vezes, sem sucesso. Quando abriram o microfone para pergunta, ele foi o primeiro a levantar a mão. Para começar, disse estranhar a formação da mesa, com várias mulheres e apenas um homem. Depois disso, começou uma espécie de palestra a respeito dos perigos da tecnologia. A coordenadora da mesa pediu para que ele fosse direto ao ponto, que fizesse sua pergunta. “Mas que pergunta?”. Ao cortarem seu microfone, ele gritou: “Eu sou um prêmio Nobel! Vocês têm que me escutar!”.

01/12/2018

  1. Quatro policiais, em silêncio, observavam impassíveis um homem caído na estação de metrô.
  2.  Um homem entra no vagão do metrô com fones de ouvido e dança sozinho, como se estivesse em uma festa.

03/12/2018

  1. Um peixe espatifado no meio da Sexta Avenida.
  2. New York Public Library. Um homem supostamente trabalha de óculos escuros.

04/12/2018

  1. Uma pessoa de gorro vermelho e sapatos barulhentos (de sapateado?) caminhava entre prateleiras na NYPL.

Quase todos os dias do outono/inverno

  1. Luvas perdidas por toda a parte.

10/12/2018

  1. Um homem na NYPL lia compenetradamente. O alarme de seu relógio começou a tocar. Um funcionário da biblioteca se dirigiu até ele para solicitar a desativação do som incessante.
  2. Um homem se sentou na minha frente. Soluça. Assusto. Ele passou a me encarar incessantemente. Recolhi minhas coisas e me retirei.

Réveillon 2019

  1. Bar portorriquenho no Brooklyn. Um chinês de cabelo azul financiou uma playlist de música brasileira selecionada por mim e outros amigos.
  2. Uma mulher cantou ópera em frente ao bar.

Diário da bolsa – 11out a 11nov2018

21/10/2018

  1. Madrugada na Broadway de Astoria. Dois homens abandonam um urso de pelúcia gigantesco.

27/10/2018

  1. Harlem. Linha 1 do metrô. Uma mulher fumava dentro do vagão. Minutos depois elogiou os sorrisos meu e de uma amiga. Após agradecermos, de um grito de “New York” vindo dela, seguido de um “uhul” nosso, ela se colocou na passagem entre os vagões do trem em movimento. Se voltava às vezes para acenar para a gente.

28/10/2018

  1. Bolsonaro eleito.

30/10/2018

  1. Hutington Station. Um homem ofendia todos que esperavam o trem na estação. Fazia arminha com os dedos. Vestiu uma máscara de monstro na sequência.

31/10/2018

  1. Fantasias por toda a parte.

01/11/2018

  1. Bronca por beber água na frente dos Delacroix no Metropolitan Museum.
  2. Bronca por deixar minha garrafa d’água em um mesanino do Met.
  3. Bronca por aproveitar o fogo da vela de uma mesa em um bar para queimar um palito de dente.
  4. Bronca por atravessar a rua quando o sinal estava fechado para mim.

02/11/2018

  1. Bronca por quase ter levado uma porta na cara na NYPL.

08/11/2018

  1. Trem da Long Island Rail Road (LIRR). Ao abrir a porta do banheiro, vejo em fragmentos de segundo uma mulher com os dois pés sobre o vaso.

10/11/2018

  1. Briga no trem da LIRR.

Stand clear of the closing doors, please

Provavelmente foi na linha F do metrô de Nova Iorque que eu tropecei pela primeira vez em meu catolicismo moral. Encostada num dos cantos do vagão, me assustei com alguém que passava por aquela porta entre os carros: algo que não só acontecia no trajeto do Manhattan pro Queens ou vice-versa, mas que recorre também nos metrôs do Brooklyn e talvez nos do Bronx, que não conheci. Não foram os sete anos de catequese com carolas que me fizeram pensar “meu deus, que perigo!”, talvez seguido de “deveriam interditar essas portas”, porque, replicando uma piada costumeira para os católicos, para espantar os pombos da Igreja, basta crismá-los. Inclusive cruzei muitas vezes por aquela catedral da Quinta Avenida – o Google acaba de me informar que trata-se da Saint Patrick’s Cathedral -, mas não cometi a heresia espiá-la por dentro e avaliar se suas entranhas sagradas são tão bonitas e impositivas quanto suas duas torres neogóticas que apontam para um céu cheio de quadradinhos iluminados. Minha surpresa com o ir-e-vir das pessoas por aquelas portas que se ligam aos outros vagões por uma pequena ponte, delimitada por correntes frágeis, talvez possa ser explicada por uma sociologia do brasileiro que não domino.

Creio que tenha algo a ver com uma ânsia de controle dos corpos, atividade bem executada pela Igreja Católica desde que chegou ao continente americano para implodi-lo e refundá-lo a partir de um europeismo que predomina ainda hoje. Inevitável lembrar de uma confissão comunitária – um ritual católico para evitar a fadiga dos padres, destinada a quem não carrega consigo pecados graves e mortais – em que fui ainda criança e na qual o padre advertiu que a masturbação era uma grave violação da lei divina. Encucada, na hora de dormir fui atrás do dicionário de capa preta para descobrir o que significava aquilo. Surpreendida por meu pai perguntando o que eu fazia ali àquela hora, fechei o livro rapidamente, assustada por transgredir o ritual para dormir na tentativa de entender a transgressão contada pelo padre. Coerentemente nossos ônibus têm catracas para impedir uma infração antes que alguém pense em realizá-la. O remédio vem antes da doença, o que não significa profilaxia, mas adoecimento.

As portas entre-vagões trazem um aviso: “Riding and moving between cars is prohibited”. Ainda assim elas permaneciam destrancadas e o evangélico que falava assertivamente sobre a volta de Jesus, os malabaristas, o saxofonista e outras pessoas comuns passaram por ali. Minha mente católica quis controlar esses corpos antes que eles se desequilibrassem e caíssem dilacerados nos trilhos do metrô, ou até mesmo afastar possíveis ímpetos suicidas, que de acordo com a religião não são dignos de nenhuma salvação. Na entrada dos museus fui motivo de risos condescendentes quando quis comprovar que tinha sim comprado os bilhetes, mas não precisava, meu corpo estava livre, diferentemente de quando tive minha necessaire com escova de dente, pasta, absorvente e perfume revistada na entrada da biblioteca do IEL. É que eu poderia carregar um livro dali.

Acontece que esse susto que tomei quando estava encostada no canto de um metrô, que possivelmente me levava ao Queens naquele dia, passou a me desajustar. Logo eu, que há alguns anos andava tão concorde com a minha vida íntima, embora participando de uma coletividade tão intensa e caótica em tempos de golpe no Brasil – golpe esse, inclusive, que também carrega muito de uma sociologia do país. Sendo parte dessa sociedade e estrutura do raciocínio brasileiro, tive de repente os alicerces remexidos. Quase aos 30 anos, pela primeira vez no “primeiro mundo”, entendi o liberalismo, mas não no sentido econômico – que eu acho lamentável. Depois de um longo período em que o mundo foi maior que eu, eu paulatinamente passei a ser maior que o mundo. Isso me lembra um documentário ao qual assisti ou sobre o qual ouvi falar: nele, uma dançarina afirma que os melhores anos da sua vida são aqueles que coincidem com a Segunda Guerra Mundial, obviamente não pela guerra, mas pelo que foi sua vida particular naquele período. A porta do metrô me trouxe de volta um misticismo particular que nem mesmo as torres góticas maravilhosas foram capazes de impor sobre mim. E certamente isso também representa um ganho coletivo.